ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO: DISCURSOS SOBRE O PLANEJAMENTO FAMILIAR E GRAVIDEZ NA ADOLESCÊNCIA
Resumo
Pela perspectiva discursiva, a cidade – espaço da constituição dos sentidos – reclama por gestos de interpretação particulares, tendo em vista que constitui um espaço simbólico trabalhado na/pela história. Para Orlandi (2004, p. 12), a cidade é o lugar onde se concentram instituições administrativas e políticas, dentre elas, a família, aqui entendida como o conjunto de sujeitos ligados por laços de sangue e/ou afetivos, que con-(vivem) no espaço urbano, pois conforme a autora citada, “[...] o corpo dos sujeitos e o corpo da cidade formam um, estando o corpo do sujeito atado ao corpo da cidade, de tal modo que o destino de um não se separa do destino do outro” (ORLANDI, 2004, p. 11).
Historicamente, as decisões tomadas no interior da família eram discutidas dentro de casa (espaço privado) e na presença exclusiva dos seus membros. No seu interior, o sujeito masculino ocupava o lugar imaginário de chefe, exercendo sua autoridade sobre os demais membros, o que lhe exigia por um lado seriedade, mas concedia-lhe, por outro, honra e respeito. Já ao sujeito-feminino, marcado pela fragilidade emocional e financeira, restava acatar as decisões do marido, submetendo-se a ele, além cuidar da organização da casa e da saúde e educação dos filhos, em especial, da educação sexual, sempre atrelada as suas características maternais e afetivas. As questões relativas à sexualidade representavam o que havia de mais privado, e talvez por isso, tenha sido considerada um tabu pela sociedade patriarcal e conservadora da época, marcado por ideologias religiosas e moralistas, escapando assim, da tutela do Estado.
Sob essas condições de produção, discursos sobre sexo, sobre concepção ou sobre como os bebês nasciam eram completamente interditados. Aos sujeitos adolescentes cabia descobrir os “mistérios” da sexualidade por conta própria ou por meio da investigação das experiências alheias. Além disso, segundo Prost e Vincent (1994, p.386), “a sexualidade precoce tendia a ressaltar ainda mais as diferenças entre o domínio do masculino e do feminino”, pois enquanto os sujeitos femininos deviam se manter virgens até o casamento, os sujeitos masculinos iniciavam sua vida sexual na prostituição, desde muito cedo.
Há que se considerar também, que os sujeitos-femininos, não raro, eram vítimas do incesto, do estupro, da pedofilia ou da própria negligência, e devido à falta de conhecimento sobre os métodos de anticoncepção, geralmente incorriam na gravidez indesejada, situação que passou a desequilibrar a instituição familiar, obrigando-a pedir auxílio ao Estado e abrindo brechas para que ele passasse a interferir no âmbito do privado, de modo que atualmente, esses domínios encontram-se intrinsecamente ligados, sendo bastante difícil delimitar suas fronteiras.
Um exemplo disso são as discussões que dizem respeito ao planejamento familiar, fato relativamente novo, já que as preocupações com o tamanho da família, no Brasil, começaram a ganhar destaque apenas no século XX, quando foi constatado o grande aumento do índice de natalidade comparado ao índice de mortalidade no país, além do surgimento de vacinas contra doenças infectocontagiosas e dos avanços da medicina, que apontavam para o aumento da população e para uma maior expectativa de tempo de vida.
Diante desse novo quadro, houve por parte de algumas instituições públicas/ entidades governamentais, a iniciativa de optar por mecanismos de controle populacional em nome do desenvolvimento econômico do país. Com isso, a família, lugar privado por excelência, passa então a ser moldada/ controlada pelo Estado, que com a imposição de leis, regras e normas, passam a determinar aquilo que os sujeitos deviam/não deviam fazer.
Embora seja difícil delimitar o que de fato pertence ao domínio do coletivo e aquilo que está relacionado à vida de cada sujeito, em particular, uma vez que, no espaço urbano o público e o privado convivem como faces de uma mesma moeda. Associamos o privado à família e o público à ordem política, social e econômica e assim facilitamos o entendimento das fronteiras entre esses espaços coletivos que perpassam a cidade e observamos que, mesmo a família sendo uma instituição privada, ela não está dissociada, tampouco isenta da regulação e da interferência do Estado.
Nesse sentido, no Brasil, o Ministério da Saúde, em parceria com o Sistema Único de Saúde (SUS), vem desenvolvendo campanhas publicitárias sobre o planejamento familiar e a gravidez na adolescência, buscando atingir as pessoas sexualmente ativas, bem como os profissionais da área da saúde (médicos, enfermeiros e demais funcionários do setor), que de acordo com a perspectiva teórica na qual nos inscrevemos, no imaginário coletivo, são tidos como “bons sujeitos”, pois devem trabalhar pelos interesses do Estado, ou seja, devem re-(produzir) os discursos do Ministério da Saúde, inscrevendo-se assim, na formação discursiva do Estado, mais especificamente, na do controle da natalidade.
Neste trabalho, entendemos que o Ministério da Saúde, por fazer parte do governo, da administração do Estado, funciona como Aparelho Repressor de Estado (ARE), nos termos de Althusser (2001, p. 67), uma vez que tem por finalidade não apenas promover, proteger e recuperar a saúde da população, de modo a reduzir as enfermidades, as doenças endêmicas e parasitárias, proporcionando maior qualidade de vida ao brasileiro, mas também controlar o aumento da população. Já a família, de acordo com o mesmo autor, “instituição distinta e especializada”, funciona como um importante Aparelho Ideológico do Estado (AIE)[1], e desempenha, entre outras “funções”, a de reproduzir a força de trabalho e unidade de produção e/ou de consumo (ALTHUSSER, 2001, p. 68). Contudo, ela funciona de modo inverso ao Estado, isto é, predominantemente pela ideologia e secundariamente pela repressão,
Com base nisso e, ancorado nos pressupostos teórico-metodológicos da Análise de Discurso (doravante AD), tal como proposta por Michel Pêcheux, na década de 60 do século XX, o intuito do presente trabalho é verificar como são discursivizados o planejamento familiar e a gravidez na adolescência, uma propaganda não-comercial, tutelada pelo Ministério da Saúde, bem como verificar que efeitos de sentido que dela decorrem. Pretendemos ainda, analisar em que medida esses discursos do domínio do público atravessam o domínio do familiar (privado), interferindo no seu interior e atestando o trabalho da língua na história.
[1] Conforme Louis Althusser (2001), instituições privadas podem perfeitamente ‘funcionar’ como Aparelho Ideológico do Estado, dentre as quais destaca: o AIE escolar, o AIE político, o AIE jurídico, o AIE sindical, o AIE cultural e o AIE familiar, que segundo ele, “[...] funcionam principalmente através da ideologia, e secundariamente através da repressão seja ela bastante atenuada, dissimulada, ou mesmo simbólica”, na medida em que “moldam” suas “ovelhas” (ALTHUSSER, 2001, p. 70).
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