DE COMO ESQUECER É LEMBRAR, RECONHECER
Resumo
Lemos em Paul Ricoeur (2007, p. 424) que “de início e maciçamente, é como dano à confiabilidade da memória que o esquecimento é sentido. Dano, fraqueza, lacuna”. E se é nesse particular onde a memória se define como luta contra o esquecimento, não é forçoso reconhecer que o dever de memória, nesse caso, seja enunciado como uma exortação ao total olvidar. Não obstante, “ao mesmo tempo, e no mesmo movimento espontâneo, afastamos o espectro de uma memória que nada esqueceria. Consideramo-la até mesmo monstruosa” (RICOEUR, 2007, p. 424). Assim, no assombro ao culto de uma memória caudalosa ou infinita Ŕ qual a de Irineu Funes1, da ficção de Borges, conforme lembrança do próprio filósofo Ŕ, vez ou outra, é preciso aparar as devidas sobras, furtando-se do apego à retenção que, habilmente, temos das situações, das coisas, do mundo. Dito isso, partilhemos das seguintes questões ricoeurianas: qual seria a medida da memória humana a ser utilizada? O esquecimento não seria, proeminentemente, o inimigo da memória? Ou, ainda, à memória caberia sitiar mesma medida do esquecimento? Para ir ao encontro das respostas, o autor de A Metáfora viva assinala que, em primeiro lugar, é preciso presumi-las a reboque da carga polissêmica do vocábulo esquecimento. Isso porque é tão somente a partir de sua condição prenhe de significados que podemos distinguir a memória sob duas perspectivas: a cognitiva e a pragmática. Na primeira, a memória é “apreendida de acordo com sua ambição de representar fielmente o passado”, ao passo que na segunda, o que está em jogo é a operacionalização da memória, “seu exercício, o qual é a ocasião das ars memoriae, mas também de usos e abusos que tentamos repertoriar, segundo uma escala própria” (RICOEUR, 2007, p. 424).
Ocorre que balizar a memória nesses termos implica discriminá-la, isto é, promover a releitura de seus níveis, qual seja, de profundidade e manifestação; releitura, que, sendo tributária da ação do esquecimento, cumpre dizer, tem como tarefa conferir uma nova significação à ideia de profundidade, correlacionando-a com a perspectiva cognitiva da memória. Assim, o esquecimento erige em aporia, face ao imanente caráter problemático e pouco confiável da representação do passado, quando, pela memória se reconstrói, ao contar com uma “poderosa pregnância imaginária”, no adendo de Maria Rita Kehl (2010, p. 127).